segunda-feira, 29 de março de 2010

Recesso Espiritual.

Encarando a TV, já se passaram dias. A barba de penugem ruiva floresceu num rosto adolescente cravado de espinhas, vermelhas e brancas. O pré-homem semi-nu se levanta depois de longas e escuras 16 horas deitado no buraco da sua cama. Já de pé, encarou o espelho, ligou o chuveiro e deu-se ao luxo de um banho demorado, quase 1 hora.

Enxugou-se, coçou os olhos como se acabasse de nascer encarando a si mesmo fanaticamente durante alguns minutos. Ainda nu, apressou-se em tomar um café. Sintonizou a estação mais água com açúcar do rádio e dançou com um cabo de vassoura, seus olhos ainda estão nela, como se madeira fosse carne.
Aquilo era angústia adolescente mal remunerada, era o retrato do disléxico, era o ponto máximo da discussão “o homem e sua doença”. De fato algo vivo e visceral, maior que qualquer doença.

Consumido por si mesmo, ao longo do tempo, o escravo da própria preguiça que resolve se taxar no próprio esquecimento, um homem de luas e madrugadas antes afiadas, hoje esquecidas.

Ao analisar a depressão de Carlos Eduardo, fui parte dela. Conheci o seu profundo caráter angelical e poder de conquista de alguém com um “Q” especial e requintado pelo diferente. Cheguei a questionar meus meios, mas qual meios? Eu fui escolhido, sorteado e obrigado, como num júri popular, ou seria cultura popular? Gostaria de saber se existe alguma entidade capaz de realmente julgar uma pessoa, um animal que seja.

As palavras cercaram nossos momentos juntos, próximos de um certo estranhamento, porém éramos mais parecidos do que aparentávamos. A primeira vez que o vi, olhava fixamente o chão composto por moscas e alguns insetos que comiam o resto de uma latinha de sardinha, pelo cheiro parecia estar ali há dias, no seu quarto. Demorou a falar, mas gesticulava com ênfase e até acerca de um ufanismo, tímido e explosivo ao mesmo tempo. Quando falou, foi breve e contundente, sempre me vendo como um
investigador do seu modo de vida.

O primeiro sorriso demorou 3 dias. Quando Carlos me mostrou um vinil do The Temptations e colocou para tocar, o clássico “Get Ready”, do qual sou um pessoal admirador. Então, ele dançou com o cabo de vassoura pela primeira vez em minhas vistas e, respirávamos os anos 60. É complicado explicar em palavras, mas vou tentar. Ouvir aquela música, naquele momento e com aquela energia foi inexprimível, e nem ao menos sei o certo por que. Entranho? Imagina para mim, formado pela faculdade de vida, desastrado e naturalmente fiel a uma dezena de ideais simplórios. Eu vi o mundo em códigos até tal dia. Transformei-me.

Como o ser-humano pode ser tão pequeninamente insignificante? Caminhei para casa, nessas noites de trabalho, visualizei sonhos de pensamentos sensíveis, notei o recalque dos ladrilhos das calçadas e ainda noto, com novos olhos. A música que foi feita para também ser notada, se faz presente nos meus fones de ouvidos brancos, pelos trilhos do metrô. Tornei-me por fim uma pessoa mais pensativa e nada menos distraída, ainda simplório.

Então chego em casa, escuto “Stand by me”, do topo da montanha que fiz para mim, penso em algo maior no calor da alma: a vida pede bis. 2 cálices, nada mais. Asfalta de mim.

Durmo, amanheço.
Eu e Carlos Eduardo não sentimos o sono.

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